Os pássaros cantam em
cima do muro
Isa Oliveira – Jornal
O Imparcial – edição de 11 de outubro de 2017
“Le ciel est bleu, réveille-toi! C'est un jour nouveau qui commence. Le
ciel est bleu, réveille-toi! Les oiseaux chantent sur les toits. Réveille-toi!”
(La marche des
jeunes - Charles Trenet)
Quando
entrei no Ginásio, em 1976, ainda havia aulas de francês, ministradas pela Dona
Carmem Perez Nunes. Depois da aposentadoria dela, o francês deixou de ser
ensinado, sendo substituído pelo inglês, com o qual eu briguei logo de cara,
pois ele não tinha nem de longe a sonoridade e a elegância do francês. Minha
aversão pelo inglês foi tão grande que até hoje eu não aprendi o idioma, que
sempre considerei um mal necessário, porém, evitável e o evitei. O idioma
francês me remetia a um mundo utópico, de céu sempre azul, com pássaros
cantando em cima dos telhados. Para mim, o francês era uma chave que abria um
mundo mágico e, na minha inocência de menina, eu nem imaginava a França como um
país, mas, como um paraíso, um lugar lindo onde havia céu azul, pássaros e paz.
Até
hoje guardo na lembrança palavras, frases, expressões e músicas que a Dona
Carmem nos ensinou. Nem sempre sei o significado, mas, a musicalidade das
palavras, não me saiu da memória. A citação com que comecei o artigo é de uma
das canções que a dona Carmem tentou ensinar para nós, La marche des jeunes e, ultimamente, eu tenho me pegado com
bastante frequência cantando o trechinho dela que me lembro e cuja tradução é: “O
céu é azul, acorde! É um novo dia que começa. O céu é azul, acorde! Os pássaros
cantam nos telhados, acorde!” .
Todas as manhãs, enquanto
preparo a comida para os meus cachorros,
coloco bocados de arroz cozido sobre o muro e vêm pássaros de todos os
lados fazerem seu desjejum. E, enquanto recolhem a comida com seus biquinhos
ávidos, eles cantam em cima do muro, enchendo de alegria o meu quintal e a
minha vida. Algo tão simples e tão imenso.
Como meu marido trabalha até
às 23h00, ele acorda um pouco mais tarde e às vezes liga a TV para assistir aos
noticiários matinais. Normalmente o foco é Brasília e vemos os dejetos
escorrendo desse corpo podre que é a nossa política. Não posso dizer que nunca
houve tanta corrupção, mas posso afirmar que nunca se investigou tanto e nunca
se revelou tanto das falcatruas e roubalheiras de nossos poderes mal
constituídos, mas, o que mais causa indignação é ver as manobras que são feitas
para se evitar a punição dos culpados ou liberar aqueles que a justiça
conseguiu prender, mudando até as regras da justiça! Coisas que antes eram
feitas na surdina, por baixo dos panos, pra ninguém saber, como diz uma música
de Ney Matogrosso, agora são feitas de forma escancarada, não mais na calada da
noite da desonra, mas, à luz do dia, na cara de todo mundo. E enquanto somos
assolados por essa revoltante miséria moral, somos distraídos com exposições
bizarras e discussões mais bizarras ainda em torno delas e, como cereja do
bolo, atos terroristas, atiradores e vigilantes incendiando o corpo e matando
centenas de jovens e um punhado de criancinhas com sua sandice, sua loucura.
Ah, claro, esse pudim também tem calda, uma calda feita do sangue da violência
do crime organizado ou dos crimes passionais, que vão de homens matando
mulheres, namoradas e às vezes até os filhos a cretinos despejando esperma em
passageiras de ônibus. Tudo servido na requintada bandeja da impunidade.
Se você vê o jornal de
qualquer emissora, vê isso, misturado a alguma catástrofe natural que parece
estar acontecendo dia sim e outro também; se assiste novelas, tem mais do
mesmo, se procura um programa cultural, tem mais do mesmo e acaba se sentindo
um refém, quando não um idiota que já nem sabe mais se posicionar e tem medo de
dizer que algo é errado e ser assolado por todos os lados com emblemáticas
afirmações de que é certo, ou dizer que é certo e ser enxovalhado com gritos de
que é errado. Parece que vivemos num descontrole total, num caos sem precedentes
e o resultado disso é a eleição de Trumps e Bolsonaros e a torcida para que os
Estados Unidos lancem logo suas potentes bombas sobre a Coréia do Norte e os
militares assumam o poder do nosso país para tentar conter o que não pode ser
contido. O que sobressai de tudo isso, mais do que chegarem ao poder
oportunistas travestidos de ditadores do bem é a perda da fé e da esperança.
Perdemos a fé no ser humano,
perdemos a fé em nós mesmos e perdemos a fé em Deus, justamente quando
deveríamos acreditar muito mais na capacidade do ser humano de optar pelo bem e
de praticá-lo, acreditar na nossa capacidade de escolher, de decidir pelo que é
correto, pelo que é moral, pelo que é justo e, sobretudo, acreditar que Deus
está no comando e que, na história da humanidade, não houve caos que não se
revertesse, não houve desordem que não se transformasse e não houve mal que
prevalecesse, simplesmente porque tudo passa e porque não apenas o nosso mundo,
mas o Universo está regido por leis justas e por uma harmonia que vai muito
além de nossos achismos, partidos ou indignações, uma harmonia que está no
canto dos pássaros que vêm se alimentar sobre o meu muro, uma sinfonia de
pardais que me mostra, todas as manhãs, que vale a pena sorrir, que vale a pena
acreditar, que vale a pena amar, porque embora isso tudo se assemelhe ao fim do
mundo, esse mundo não terá fim, mas sim passará por transformações que o farão
melhor.
Até mesmo para os crentes
existe a alternativa de parar na cruz e fazer a
apologia do eterno sofrer ou avançar três dias e chegar no túmulo vazio,
na ressurreição e na ascensão daquele que, com apenas três anos de atuação, mudou
o cenário do mundo e dividiu a história no meio. Creio que nunca se falou tanto
em apocalipse e cumprimento de profecias e muitos fanáticos até se prepararam
para um arrebatamento que não houve e a colisão com a Terra de um planeta
imaginário, no dia 23 de setembro, que também não ocorreu. Muitos afirmam que é
o fim, mas, o próprio livro do Apocalipse, embora pareça trágico, é um livro
que fala de justiça e de esperança e o seu último capítulo, que encerra a
Bíblia, é um texto positivo e uma promessa de vitória e de fim, não dos tempos
ou do mundo, mas, fim do mal, das injustiças, das calamidades, da violência e
da desolação à qual o coração humano se entregou, pela qual se deixou levar.
Por pior que estejam as coisas, por mais sangue e lama que escorram sobre todos
nós, crentes ou ateus, não podemos nos esquecer que há um controle no Universo.
Há um salmo que diz que Deus conhece os pássaros que voam pelos céus e os seres
vivos que se movem pelos campos. Que não percamos a simplicidade de nos
deliciar com “le ciel est bleau” e
com os pássaros, conhecidos por Deus, que
cantam em cima dos telhados e dos muros e que sejamos simples,
confiantes e alegres como esses pardais.
Maravilhoso texto. Completo no tocante à atualidade. A autora enfeixa não uma opinião unilateral do que acha... Mas a confrontação com a verdade das ocorrências no Brasil e no mundo. Parabéns à Isa de Oliveira. Como especialista em trânsito costumava falar em minhas aulas no SENAC e Escola de Cabos e Sds da Polícia Florestal: O homem não é motorista (está motorista) porque estacionando o carro (estará pedestre). Então vou ao caso: O Brasil não é corrupto - é uma entidade - o Brasil está corrupto. No mais a escritora disse tudo.
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