Quanto
tempo me resta?
Isa Oliveira
Quando eu era pequena e
acreditava que o Universo se resumisse às ruas de Monte Alto, às serras da Água
Limpa e do Barreiro e a Jaboticabal, lugar mais distante que eu conhecia, o meu
mundo, meu norte, meu amparo, minha referência era minha mãe, Dona Olívia, e
juntas costumávamos sonhar. Já nessa época, com meus seis, sete anos, minha mãe
começou a fazer o enxoval do meu casamento. Lençóis, panos de prato, toalhas de
banho e toalhinhas de crochê eram comprados e confeccionados com muito carinho,
indo para um cantinho do guarda-roupa. A minha irmã, que até hoje chamo de
Tata, onze anos mais velha que eu, já tinha o seu enxoval completo, guardado
numa mala que ficava no quarto de nossos pais.
Assim era porque o sonho
de minha mãe era o nosso casamento. Minha irmã já namorava sério, namorava “em
casa”, como se costumava dizer, portanto, já estava encaminhada. Eu era apenas
uma menina, mas minha mãe me fazia vislumbrar um horizonte tão lindo, tão
exuberante que ganhar um guardanapo com minhas iniciais bordadas e um delicado
biquinho de crochê me alegrava tanto ou mais do que ganhar um brinquedo. No
entanto, algo destoava dessa harmonia, pois a tão sonhada felicidade colada em
nossas esperanças pela delicadeza e persistência de minha mãe, não a
conhecíamos na prática. O meu pai era alcoólatra, jamais tratou a minha mãe ou
a qualquer dos filhos com carinho e respeito, nunca sentava para conversar
conosco e fazer as refeições em família era uma utopia que não víamos nem nas
novelas, porque não tínhamos televisão em casa.
Minha mãe era uma pessoa
maravilhosa, dedicada, prestativa, trabalhadora. Não achávamos que ela mentisse
para nós ou nos enganasse, mas, ela parecia vislumbrar algo que era interditado
aos nossos olhos porque, lá em casa, só o que presenciávamos eram brigas,
violência e lágrimas. Vivíamos sob o império do medo e a pior parte do dia era
o retorno do meu pai para casa, porque ele chegava bêbado quase todos os dias e
amostras grátis do inferno eram a nós oferecidas em doses cavalares. Bem, é
fácil deduzir que o casamento foi uma realidade que não fez parte da minha vida
e da vida da minha irmã. Não que não
desejássemos amar e não buscássemos ansiosamente por isso. E tão ansiosamente
buscávamos que tornamo-nos presas fáceis de aproveitadores que não nos deram o
ansiado lar que seria enfeitado com nosso primoroso enxoval, mas deixaram em
nós as suas marcas e ambas aprendemos a carregar o rótulo de mãe solteira.
Aprendemos, observando nossa mãe, que ter filho, ser mãe era a melhor coisa do
mundo, mas, o casamento com o qual sonhávamos junto dela era o pior martírio
que uma mulher poderia viver.
À medida que fui tirando
as peças de meu enxoval do maleiro do guarda-roupa, um pedaço de mim e dos meus
sonhos com ela partilhado foram se esvaindo e me entristecendo. Aquela
felicidade podia até existir em algum lugar, mas, certamente não estava reservada
para todos, não estava reservada para mim. Hoje os valores mudaram e o conceito
de família, paternidade e maternidade se banalizaram muito e ser mãe solteira
não causa grande estranhamento numa sociedade tão fragmentada e confusa, mas,
30, 40 anos atrás isso era bem mais complicado. Ter um filho solteira era
manchar a honra, era ficar falada e foi essa amarga realidade que eu e a minha
Tata experimentamos, embora nada em nossa vida tenha sido tão
extraordinariamente bom como nossos filhos.
Fiz ainda algumas
tentativas, mas, de tanto provar da realidade, nem sempre fácil, a tendência é
que deixemos de sonhar e nos amoldemos aos fatos. Mas, as sementes que minha
mãe plantou em meu coração eram muito resistentes e, embora o tempo tenha
passado, lá dentro de mim restou a ânsia secreta de um casamento bem sucedido,
um grande amor com final feliz. Na outra vida, quem sabe? Mas, e se não houver
outra vida? Só que minha mãe deve ter continuado insistindo em seus sonhos lá
do Céu para onde se mudou e, um dia minha solidão foi visitada por um certo
Henrique, curiosamente, o nome do primeiro amor de minha infância, um Henrique
que se matou aos 19 anos e cujo túmulo sempre visito quando vou a Monte Alto. E
esse Henrique de agora me mostrou que os sonhos da mãezinha não eram mero
devaneio, mas algo possível, limpo, correto e bom e amanhã, 31 de outubro, às
17 horas, ele estará me recebendo como sua legítima esposa aos pés de um altar,
numa cerimônia sui gêneris, pois o
padre celebrante será o meu querido filho, ao qual dediquei a minha vida.
O meu vestido de noiva é
lindo e várias pessoas estão se esmerando nos preparativos, sobretudo minha
irmã, que compreende o que significa vestir-se de noiva na minha idade. Estou
flutuando como uma menina e às vezes ainda me belisco para me certificar de que
estou acordada. Então me lembro que tenho 50 anos e que a duração de meu sonho
será limitada pela inclemência do envelhecimento. Quanto tempo me resta para
ser feliz? Essa é a pergunta que já me peguei fazendo algumas vezes, mas, a
resposta é que não importa quanto tempo, pois ser feliz é uma dádiva que não se
mede em duração, mas em intensidade e, mesmo que só me restasse um dia, teria
valido completamente a pena viver até aqui sem deixar que o sonho de quem mais
me amou morresse, porque, embora não tenha sobrado nada do meu enxoval, chegou
o meu tempo de ser feliz.
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