quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

TÃO FORTE, TÃO FRÁGIL

TÃO FORTE, TÃO FRÁGIL

Isa Oliveira 

Havia uma mulher que amava. Amava muito.  Talvez a sua maior qualidade fosse o dom de amar. Esmerava-se em cuidar dos seus, em realizar-lhes todos os gostos, todas as vontades, todos os mínimos desejos, todos os sonhos – bem, esses demoravam um pouco mais e davam um pouco mais de trabalho, mas, não raro, abria mão dos seus próprios sonhos para realizar os dos seus próximos. “– Puxa, você também tem sonhos? – Alguns. – Nossa!”.

Ela começou a perceber que algo não ia bem num dia em que passou a tarde inteira cozinhando, se superando na preparação de pratos deliciosos e bonitos, que agradariam o paladar de todos os que lhe eram caros. Tudo ficou especial. Preparou a mesa com criatividade e carinho, para estar à altura daquelas iguarias. Dispôs a louça e os talheres com cuidado e enfeitou o centro da mesa com flores. Deixou as travessas sobre a pia e as panelas sobre o fogão, para não esfriar a comida, e foi preparar-se para também estar à altura de tão elaborado banquete.

Tomou um demorado banho, satisfeita consigo mesma, imaginando a alegria deles quando vissem a mesa linda e experimentassem os pratos tão saborosos. Até arriscou passar um creme na pele, maquiou-se, escolheu um vestido bonito, ajeitou bem os cabelos, colocou até brincos e colar e, quando desceu, para a sua surpresa e decepção, todos já tinham chegado e jantado! Ignoraram as travessas bonitas e puseram as panelas na mesa, de qualquer jeito, derrubando as flores do vasinho que ajeitara com tanto carinho.

Nas mesa, apenas sobras, panelas praticamente vazias, copos, talheres e pratos sujos. Nem um comentário elogioso, nenhum agradecimento, nem mesmo a mínima ajuda para recolher a louça suja. Colocou em seu prato a carcaça do frango que sobrara, junto com a raspa de arroz do fundo da panela. Sentiu-se a pior das criaturas e enojou-se com o perfume do creme que exalava de sua pele. Não comeu. Chorou.

Este exemplo pode parecer exagerado, mas, não é. Há teóricos que afirmam erradas as pessoas que doam e se ressentem por não receber gratidão, reconhecimento, dizem que a doação deve ser um fim em si, uma atitude desprendida e altruísta. Isso até pode ser assim para espíritos evoluídos em algum outro plano de vida, talvez para os anjos, mas, conosco, seres humanos comuns, não é assim que funciona. Tirando algumas exceções, normalmente não fazemos as coisas de forma calculada, visando buscar reconhecimento, no entanto, precisamos dele para nos alimentarmos. Um elogio sincero faz bem para a pele, faz bem para a autoestima, faz bem para a alma e estimula novas boas ações.

Digam o que disserem, apregoem a utopia que apregoarem, mas, na economia da vida, o reconhecimento é moeda fundamental. O problema não é de quem precisa dele, mas de quem não o sabe dar. A ingratidão fere mais que a lâmina de um punhal. São tantas pequenas coisinhas, aquela palavra de gentileza, o telefonema não dado, a delicadeza não retribuída, um simples obrigado pela gratuidade da dedicação alheia. Às vezes, uma pessoa move mundos e fundos, muda sua rotina, sobrecarrega-se, abre mão de coisas importantes apenas para proporcionar ao outro um prazer, uma alegria, para consolar, para ajudar na solução de um problema e o outro age como se a pessoa não fizesse mais que a obrigação. Às vezes, a pessoa deixa de comer para dar o alimento ao outro e o outro ainda diz: “Só isso?”.

No caso de nossa amiga, que naquela noite foi dormir com fome, no início, ela até ganhava um beijinho e o comentário de que estava uma delícia, mas, com o tempo, o seu dedicar-se se tornou parte do óbvio, o que deveria ser dádiva, tornou-se obrigação, o que deveria ser troca, tornou-se via de mão única e, de provedora, passou rapidamente a serviçal e os únicos comentários que ouvia eram queixas quando algo não saía totalmente do agrado dos beneficiados.

Se alguém perdia alguma coisa, logo ela achava, conhecia o lugar de tudo, pois se tornara parte de suas funções cuidar do desleixo alheio, arrumar camas, pendurar toalhas molhadas esquecidas sobre o edredom, guardar os objetos espalhados. “– Preciso disso. – Toma!”. “ – Não sei onde está. – Aqui!”. – Estou com tanta vontade... – Satisfaça-se!”. Ah, se ela tivesse percebido – e demonstrado –  a tempo que estava disponível, mas nem tão disponível assim...

Por longos anos, muito se empenhou em tudo fazer para a alegria e satisfação dos que amava que, distraídos, achavam que uma pessoa que amava tanto não precisava de amor. Tinha tanto para dar que parecia nunca precisar receber. Mas, isso é um equívoco. Todos têm fome. Todos têm sede. Todos, por mais eficientes que sejam, têm carências, têm necessidade de afagos, de pequenos cuidados, de gentilezas, de gratidão, de reconhecimento. Todos precisam do amor expresso e não apenas do amor subentendido. Até Jesus, um dia, sentiu-se frágil e angustiado e pediu aos seus melhores amigos que o acompanhassem e vigiassem com Ele, e eles dormiram...

Quando alguém dá muito, geralmente é porque tem um grande reservatório, por isso, quase nunca pede nada e, quando pede, pede muito pouco, coisas que até parecem insignificantes, mas que, para elas, significam muito, porque ninguém, por mais auto-suficiente que pareça, basta-se a si mesmo. Mas, assim como os discípulos de Jesus, nem mesmo esse pouco aqueles que estão acostumados a fartar-se na sua abundância conseguem oferecer, isso quando não reclamam e se sentem explorados por ter que dar em vez de apenas receber!

Essa mulher passou a sentir-se como uma ilha, cercada de mar e de solidão por todos os lados, visitada apenas por extrativistas que vinham colher seus cocos, suas bananas e outros nutrientes que produzia e oferecia sem reservas. Tinha apenas o movimento das ondas para consolá-la.

Como sou uma artífice das palavras, especializada em contar histórias, gostaria de dar a ela um final feliz, dizer que, finalmente, ela rebelou-se, pegou todas as economias ou vendeu algum bem e foi em busca de sua realização; que fez uma linda viagem e encontrou alguém que lhe devolvesse o gosto e o encanto de beijar na boca, que notasse as suas curvas ainda acentuadas, sempre ocultas atrás do avental da servidão; alguém que se dispusesse a desvendar os segredos de seu corpo e encontrar o jeito certo de lhe dar prazer, em lugar de apenas usufruir do prazer que ela proporcionava.

Poderia até dar-lhe um fim ameno e adequado à modernidade dos nossos dias, dizendo que ela passou a fazer hidroginástica, tomar anti-depressivos e Florais de Bach e teve uma vida tranquila e uma felicidade mediana, vivendo bem, até perto dos 80 anos. Porém, sou, antes, uma observadora – de mim mesma e da realidade que me cerca – e sinto em dizer que o fim de nossa heroína foi outro. De tanto passar fome e se conformar com as sobras, com o pior pedaço do frango, a fruta mais feia, o farelo do bolo, as raspas da panela, essa maravilhosa mulher, tão forte, tão frágil, morreu, exausta, de inanição, ainda na flor da vida. Foi tão essencial e sequer foi vista. Atente, pode haver uma mulher assim perto de você ou talvez, você a seja...



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