TÃO FORTE, TÃO FRÁGIL
Isa Oliveira
Havia uma mulher que amava. Amava muito. Talvez a sua maior qualidade fosse o dom de
amar. Esmerava-se em cuidar dos seus, em realizar-lhes todos os gostos, todas
as vontades, todos os mínimos desejos, todos os sonhos – bem, esses demoravam
um pouco mais e davam um pouco mais de trabalho, mas, não raro, abria mão dos
seus próprios sonhos para realizar os dos seus próximos. “– Puxa, você também
tem sonhos? – Alguns. – Nossa!”.
Ela começou a perceber que algo não ia bem num dia em
que passou a tarde inteira cozinhando, se superando na preparação de pratos
deliciosos e bonitos, que agradariam o paladar de todos os que lhe eram caros.
Tudo ficou especial. Preparou a mesa com criatividade e carinho, para estar à
altura daquelas iguarias. Dispôs a louça e os talheres com cuidado e enfeitou o
centro da mesa com flores. Deixou as travessas sobre a pia e as panelas sobre o
fogão, para não esfriar a comida, e foi preparar-se para também estar à altura
de tão elaborado banquete.
Tomou um demorado banho, satisfeita consigo mesma,
imaginando a alegria deles quando vissem a mesa linda e experimentassem os
pratos tão saborosos. Até arriscou passar um creme na pele, maquiou-se, escolheu
um vestido bonito, ajeitou bem os cabelos, colocou até brincos e colar e,
quando desceu, para a sua surpresa e decepção, todos já tinham chegado e
jantado! Ignoraram as travessas bonitas e puseram as panelas na mesa, de
qualquer jeito, derrubando as flores do vasinho que ajeitara com tanto carinho.
Nas mesa, apenas sobras, panelas praticamente vazias,
copos, talheres e pratos sujos. Nem um comentário elogioso, nenhum
agradecimento, nem mesmo a mínima ajuda para recolher a louça suja. Colocou em
seu prato a carcaça do frango que sobrara, junto com a raspa de arroz do fundo
da panela. Sentiu-se a pior das criaturas e enojou-se com o perfume do creme
que exalava de sua pele. Não comeu. Chorou.
Este exemplo pode parecer exagerado, mas, não é. Há
teóricos que afirmam erradas as pessoas que doam e se ressentem por não receber
gratidão, reconhecimento, dizem que a doação deve ser um fim em si, uma atitude
desprendida e altruísta. Isso até pode ser assim para espíritos evoluídos em
algum outro plano de vida, talvez para os anjos, mas, conosco, seres humanos comuns,
não é assim que funciona. Tirando algumas exceções, normalmente não fazemos as
coisas de forma calculada, visando buscar reconhecimento, no entanto,
precisamos dele para nos alimentarmos. Um elogio sincero faz bem para a pele,
faz bem para a autoestima, faz bem para a alma e estimula novas boas ações.
Digam o que disserem, apregoem a utopia que
apregoarem, mas, na economia da vida, o reconhecimento é moeda fundamental. O
problema não é de quem precisa dele, mas de quem não o sabe dar. A ingratidão fere
mais que a lâmina de um punhal. São tantas pequenas coisinhas, aquela palavra
de gentileza, o telefonema não dado, a delicadeza não retribuída, um simples
obrigado pela gratuidade da dedicação alheia. Às vezes, uma pessoa move mundos
e fundos, muda sua rotina, sobrecarrega-se, abre mão de coisas importantes
apenas para proporcionar ao outro um prazer, uma alegria, para consolar, para
ajudar na solução de um problema e o outro age como se a pessoa não fizesse
mais que a obrigação. Às vezes, a pessoa deixa de comer para dar o alimento ao
outro e o outro ainda diz: “Só isso?”.
No caso de nossa amiga, que naquela noite foi dormir
com fome, no início, ela até ganhava um beijinho e o comentário de que estava
uma delícia, mas, com o tempo, o seu dedicar-se se tornou parte do óbvio, o que
deveria ser dádiva, tornou-se obrigação, o que deveria ser troca, tornou-se via
de mão única e, de provedora, passou rapidamente a serviçal e os únicos
comentários que ouvia eram queixas quando algo não saía totalmente do agrado
dos beneficiados.
Se alguém perdia alguma coisa, logo ela achava, conhecia
o lugar de tudo, pois se tornara parte de suas funções cuidar do desleixo alheio,
arrumar camas, pendurar toalhas molhadas esquecidas sobre o edredom, guardar os
objetos espalhados. “– Preciso disso. – Toma!”. “ – Não sei onde está. –
Aqui!”. – Estou com tanta vontade... – Satisfaça-se!”. Ah, se ela tivesse
percebido – e demonstrado – a tempo que
estava disponível, mas nem tão disponível assim...
Por longos anos, muito se empenhou em tudo fazer para
a alegria e satisfação dos que amava que, distraídos, achavam que uma pessoa
que amava tanto não precisava de amor. Tinha tanto para dar que parecia nunca
precisar receber. Mas, isso é um equívoco. Todos têm fome. Todos têm sede. Todos,
por mais eficientes que sejam, têm carências, têm necessidade de afagos, de
pequenos cuidados, de gentilezas, de gratidão, de reconhecimento. Todos
precisam do amor expresso e não apenas do amor subentendido. Até Jesus, um dia,
sentiu-se frágil e angustiado e pediu aos seus melhores amigos que o
acompanhassem e vigiassem com Ele, e eles dormiram...
Quando alguém dá muito, geralmente é porque tem um
grande reservatório, por isso, quase nunca pede nada e, quando pede, pede muito
pouco, coisas que até parecem insignificantes, mas que, para elas, significam
muito, porque ninguém, por mais auto-suficiente que pareça, basta-se a si
mesmo. Mas, assim como os discípulos de Jesus, nem mesmo esse pouco aqueles que
estão acostumados a fartar-se na sua abundância conseguem oferecer, isso quando
não reclamam e se sentem explorados por ter que dar em vez de apenas receber!
Essa mulher passou a sentir-se como uma ilha, cercada
de mar e de solidão por todos os lados, visitada apenas por extrativistas que
vinham colher seus cocos, suas bananas e outros nutrientes que produzia e
oferecia sem reservas. Tinha apenas o movimento das ondas para consolá-la.
Como sou uma artífice das palavras, especializada em
contar histórias, gostaria de dar a ela um final feliz, dizer que, finalmente,
ela rebelou-se, pegou todas as economias ou vendeu algum bem e foi em busca de
sua realização; que fez uma linda viagem e encontrou alguém que lhe devolvesse
o gosto e o encanto de beijar na boca, que notasse as suas curvas ainda
acentuadas, sempre ocultas atrás do avental da servidão; alguém que se
dispusesse a desvendar os segredos de seu corpo e encontrar o jeito certo de
lhe dar prazer, em lugar de apenas usufruir do prazer que ela proporcionava.
Poderia até dar-lhe um fim ameno e adequado à
modernidade dos nossos dias, dizendo que ela passou a fazer hidroginástica, tomar
anti-depressivos e Florais de Bach e teve uma vida tranquila e uma felicidade
mediana, vivendo bem, até perto dos 80 anos. Porém, sou, antes, uma observadora
– de mim mesma e da realidade que me cerca – e sinto em dizer que o fim de
nossa heroína foi outro. De tanto passar fome e se conformar com as sobras, com
o pior pedaço do frango, a fruta mais feia, o farelo do bolo, as raspas da
panela, essa maravilhosa mulher, tão forte, tão frágil, morreu, exausta, de
inanição, ainda na flor da vida. Foi tão essencial e sequer foi vista. Atente,
pode haver uma mulher assim perto de você ou talvez, você a seja...
Nenhum comentário:
Postar um comentário