A ética nossa de cada dia
Isa Oliveira
Ontem,
depois de passar seis horas sentada em uma cadeira pouco confortável, numa sala
com ar condicionado abusadoramente frio num treinamento promovido por minha
empresa, sem almoço devido ao horário de início e término do curso, com um
breve intervalo de apenas 15 minutos para um coffe break, sentindo os efeitos do choque térmico ao retornar para
o calor da rua, caminhei a pé – e de salto – mais dois quilômetros até o SENAC
de Campinas para outro curso que faço todas as quartas-feiras, por escolha
própria. No intervalo da aula, eu não sabia o que era maior, se a fome ou o
cansaço, mas meu professor veio em socorro de minha indecisão ao comunicar que
iria trancar a sala. Desci a escada e fui até a lanchonete da rua de trás para
comer alguma coisa. Só há duas pequenas lanchonetes ao lado da escola e a fome
parece ter atingido a totalidade dos alunos, pois a fila estava imensa. Apesar
do cansaço, eu estava de ótimo humor e me mantive trocando ideias com uma
colega na fila até que um pequeno ocorrido me chamou a atenção. Duas mocinhas
um pouco atrás de mim começaram a reclamar do tamanho da fila, deixando-a logo
em seguida. Mas, para a minha surpresa – porque, por incrível que pareça a uma
pessoa da minha idade, ainda me surpreendo com esse tipo de coisa – uma delas
se dirigiu a uma colega, bem na frente na fila e pediu-lhe, como se fosse a
coisa mais natural do mundo, para comprar-lhe um lanche, um suco e uma salada.
Em seguida as duas sentaram-se numa mesa.
Cansada,
com fome, com sono, com os pés doendo e a garganta arranhando por efeito do ar
condicionado, me senti a mais perfeita idiota. Não reagi, apenas olhei
demoradamente para as meninas confortavelmente sentadas à mesa, conversando
animadas enquanto a colega à frente na fila fazia o seu pedido e o delas, já
tendo assegurado um lugar para sentar junto das desonestas. Eu e minha colega
de sala fizemos o nosso pedido e comemos em pé, na calçada. Tá, se formos nos
preocupar com essas coisinhas, se formos nos deixar levar por essas ninharias,
não vivemos e... Não! Basta! Não tem de ser assim, temos de nos preocupar sim,
de nos importar sim, porque essa mesma mocinha pode ser aquela que se juntará a
outros da mesma idade para ir às ruas fazer protestos e manifestações contra a
corrupção dos políticos e governantes, muitas vezes promovendo quebra-quebra e
depredação do patrimônio público e privado. Mas, que diferença há entre estar
envolvido com propinas de alguns milhões da Petrobrás para favorecer
determinadas companhias em processos de licitação e furar uma fila para comprar
um lanche enquanto guarda lugar numa mesa? Nenhuma. Não há diferença entre
roubar um real e roubar um milhão, entre não devolver o troco recebido a mais
no supermercado e aceitar vantagens pessoais e para familiares dentro da
máquina administrativa.
Devemos
protestar e exigir mudanças, mas, essa mudança deve começar em nós. No episódio
aparentemente sem importância e que apenas me causou uma leve irritação, por
estar excessivamente cansada, eu me calei e assisti passivamente a um exemplo
de corrupção ativa bem na minha frente. Assim como, na maioria das vezes,
estamos cansados demais, desanimados demais internamente para tomarmos alguma
atitude e por isso vamos assistindo, passivos e indignados, à roubalheira e pouca
vergonha que assola o nosso país. O problema é que agimos como se a questão da
corrupção estivesse circunscrita apenas a Brasília, com alguns focos isolados
de contaminação nas capitais dos estados, onde atuam governadores e deputados
e, ocasionalmente, alguns foquinhos em algumas prefeituras e câmaras de
vereadores em pontos isolados do país. Assim como associamos pratinhos de vasos
de plantas e pneus com água ao Aedes Aegypti,
associamos a corrupção aos políticos. Olhamos as consequências e não as causas,
observamos apenas os frutos, sem enxergar a raiz.
Concordo
que a proliferação do mosquito da dengue depende de ações do governo para a sua
erradicação, mas, começa na negligência de cada um de nós em cuidar de nossas
casas, nossos quintais. Assim também se dá com a corrupção. Essa mocinha que
descaradamente passou à frente de mais de uma dezena de pessoas na fila da
lanchonete, não deve achar que agiu mal, apenas foi mais esperta, soube como
valer-se de suas amizades para levar uma pequena vantagem. Esse tipo de praga
evolui e leva as pessoas a perderem a moral, a ética e a decência e não verem
nenhum mal em receber alguns milhões para favorecer um amigo em uma licitação
ou na obtenção de qualquer tipo de favor do governo e de suas autarquias. O
princípio é o mesmo, o crime é o mesmo, a diferença é que quando se mexe
grandes quantidades de dinheiro, a coisa incomoda mais.
Onde
isso começa? Infelizmente, nas nossas casas, na nossa educação, nos nossos
descuidos. O Aedes Egypti não é uma
entidade espiritual malévola vinda do além para trazer-nos uma praga
apocalíptica, é apenas um mosquitinho hospedeiro que não se reproduziria e não
se espalharia tão rápida e avassaladoramente se cada um de nós tomasse pequenos
cuidados básicos. Assim também a corrupção não proliferaria e nem se
transformaria nesse monstro hediondo que parece que não há poder capaz de
destruir se não a amamentássemos e cevássemos dentro de nossos lares, na
educação de nossos filhos desde a mais tenra idade. É comum vermos pais e mães
ensinando aos seus filhos os direitos que eles têm sobre os demais,
ensinando-os a sempre levarem vantagens sobre os coleguinhas e a darem
jeitinhos para resolver as coisas mais comezinhas. Claro, há exceções, graças a
Deus. Há pais e mães que ensinam seus filhos a serem justos, que os repreendem
quando eles erram, que lhes ensinam ética, valores morais e regras de
convivência e que não os criam como se fossem coitadinhos, sempre certos,
vítimas do mundo, injustiçados e perseguidos. Esse tipo de educação garante
que, paralelamente aos corruptos e corruptores, ainda vivam pessoas de bem,
homens honestos, de brio, pessoas éticas que veem o mal e lutam pelo seu
extermínio, o que nos faz acreditar que este país e este mundo ainda tem
conserto, que ainda há esperança, que o bem triunfará no final, sobretudo se
nos unirmos para promovê-lo, porque, mais que lutar contra o mal, é imperioso
promover o bem.
No
entanto a maioria dos pais (sobretudo as mães) ainda agem tratando seus filhos
como pequenos príncipes que gravitam acima dos deveres básicos, que devem ser
servidos, respeitados, adulados e mimados, como se fossem seres de uma ordem
superior. Com isso, se não criam corruptos e outras aberrações, porque nem
todos têm as mesmas oportunidades, criam seres humanos fracos e acomodados que,
ainda que vejam o mal se alastrando, ficam esperando que, como as suas mães os
defendiam das professoras cruéis, dos coleguinhas maus, das maquiavélicas namoradas
e esposas que os fizeram sofrer, dos patrões que os exploraram, vai aparecer
uma força do bem, um elemento superior que os salvará desse poder malévolo que
perturba a humanidade, e enquanto isso, vão reproduzindo esse mesmo modelo de
educação doente, encapsulando seus filhos dentro de uma falsa proteção,
acreditando-os injustiçados ou vítimas de bullying
quando um colega olha torto para eles, criando mocinhas bonitas e fúteis que
vão furar a fila da lanchonete e rapagões folgados que não conseguem sair da
cama antes do meio dia para procurar um emprego, mas que se prestam a marchar
heroicamente durante um manifesto, cobrir a cara com uma camiseta e sair dando
voadora em vidros de prédios públicos e, se eles porventura são pegos pela
polícia, esses mesmos pais vêm em sua defesa, dizendo que os seus pequenos
heróis estão lutando pela pátria e os levam pra casa como vencedores. A ética
no entanto...
Nenhum comentário:
Postar um comentário