Não ter
e ter que ter pra dar
Isa
Oliveira
Há
momentos na vida em que nos sentimos tão abundantes que nosso maior desejo é
dar. Já saímos da cama dispostos a dar um caloroso bom dia a quem encontrarmos,
e damos sorrisos, abraços, palavras amigas, esmolas, dividimos nosso almoço,
nosso lanche, damos o melhor no trabalho, aos amigos, à pessoa amada,
extrapolamos em criatividade. É uma sensação de transbordamento, sentimos que,
se não dermos, vamos vazar ou estourar.
Mas, há
dias, em que nos sentimos chochos, esgotados, com pouca energia, pouco ânimo,
pouca vontade, vazios. Nesses dias, levantar da cama é um tormento, responder a
algum bom dia que recebamos é uma dificuldade, quanto mais dá-lo. Não temos
sorrisos, não temos disposição, não temos gentileza, preferiríamos que nosso
cachorro fosse apenas um tapete e não uma criatura que faz xixi onde não deve,
nos momentos que não deve e parece ser movido a pilhas alcalinas, pois tem uma
energia inesgotável e está sempre disposto a fazer festa e pular em nós, mesmo
quando estamos com cara de defunto que levantou da cova. Desejamos não ver
ninguém para não ter de abraçar, conversar e responder ao inevitável: “Como
vai? Tudo bem?”. O trabalho nos enfada, os amigos nos irritam e a pessoa amada
se torna algo inadequado.
Em dias
normais e, sobretudo nos dias de alegria, podemos conversar sobre tudo,
qualquer assunto é prazeroso, rimos até do caos da nossa política com suas
falcatruas e jogadas que extrapolam a ficção. Nos sentimos lindos, jogamos
beijinhos pro espelho, gostamos do nosso cabelo e nos sentimos bem dentro de
qualquer roupa. Saudamos o sol ou a chuva ou o frio e até a água que tomamos
parece ter sabor. Já nos dias cinza, tudo nos desagrada e, ao ouvir os
inevitáveis comentários na TV, nas ruas, no trabalho, em casa sobre mais um
esquema de corrupção, mais uma prisão, libertação de um preso ou delação
premiada, sentimos vontade de jogar uma bomba atômica em Brasília ou ao menos
encontrar alguns desses bizarros personagens frente a frente e poder lhe dar um
soco bem no meio da cara. Nem passamos perto do espelho para não correr o risco
de querer quebrá-lo diante da tenebrosa imagem de nós mesmos que ele nos mostra;
qualquer roupa que coloquemos nos fará sentir horrorosos, nosso cabelo não
ajeitará nem com chapinha, Gomex ou lâmina zero, até a água vai ter sabor
amargo e o sol, a chuva ou o frio sempre parecerão inadequados e nos farão
odiar aquele dia com o seu clima próprio. Tudo será demais, calor demais, frio
demais, chuva demais.
Não
entendemos porque nos sentimos assim. Especialistas podem tentar achar motivos
que desencadeiam esse torpe estado de espírito, seja num acontecimento recente,
nos traumas de infância ou na vida passada. A verdade é que não há lógica e nem
explicação. Somos mutantes e sofremos alterações de humor que nos azedam e
azedam tudo ao redor e, dependendo do que acontece, pode nos levar a crer numa
conspiração do universo para nosso mau dia (que rapidamente confundimos com uma
má vida, esquecendo de toda a gama de dias bons que já vivemos e certamente
viveremos). Geralmente é nesses dias que o leite derrama, o pão cai com a
manteiga para baixo, o salto do sapato quebra, a meia desfia, perdemos a
condução, o pneu do carro fura... Parece que nosso estado de espírito consegue
atrair coisas ruins. Na verdade, coisas ruins acontecem o tempo todo, a
diferença é que, se estamos bem, buscamos soluções, superamos ou rimos delas.
Mas, nos dias ruins, o zumbido de um pernilongo pode provocar uma guerra.
Podemos
estar – e é ideal que estejamos – atentos a esses misteriosos e sombrios dias
de nuvens negras e, se não for possível evitarmos o convívio, tentarmos evitar
pelo menos os confrontos e nos comportarmos da forma mais amena e imparcial
possível. Temos de desenvolver um mecanismo de lembretes que nos permitam ter
consciência que esse mal-estar, esse esvaziamento de energia só está
acontecendo com a gente e que vai passar. Principalmente porque o mau humor é
contagioso e, se estamos chatos, desanimados, arredios e agressivos, acabamos
afetando outras pessoas e o que pode decorrer daí varia ao infinito.
Esses
são os dias em que a gente deseja colo de mãe, mesmo sem ter mais mãe ou que
Deus, o anjo da guarda ou seja o que for em que acreditamos nos salve de nós
mesmos. São dias, sobretudo, de vazio, de muito vazio e, nesses dias, o mais
triste, como diz a música “Sabe lá”, do Djavan, é não ter e ter que ter pra
dar, porque o nosso cachorro não é um tapete, nossos amigos não são uma rede de
esgoto, o trabalho é nossa responsabilidade e a pessoa amada não é um estranho
e nem um inimigo e, muitas vezes, o seu estado de espírito depende do nosso.
Então, mesmo em meio ao caos, mesmo que os problemas e as dificuldades sejam
reais, mesmo que a vontade seja de fugir, sair correndo até onde o fôlego permitir,
quebrar o espelho, socar o político ou gritar com alguém, o negócio é respirar
fundo e tentar encontrar algum resquício do bom e do belo dentro da gente ou –
o mais difícil – ter a humildade de pedir colo, de pedir arrego, de pedir
ajuda, porque não somos super-heróis, somos apenas pessoas que um dia estão bem
e outros nem tanto e há dias de dar e dias de pedir.
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