Como
escolher um amigo?
Isa Oliveira
Sem querer tirar o
crédito do destino, podemos dizer que escolhemos a pessoa com quem vamos nos
casar – está certo que nem sempre escolhemos bem, mas, escolhemos. Já com os
amigos, podemos dizer a mesma coisa? A escolha de um namorado ou namorada é
precedida de alguns pré-requisitos, como altura, cor do cabelo, tipo físico,
escolaridade, profissão, tipo de personalidade etc. É claro que às vezes
namoramos alguém que não tem nada a ver com aquilo que gostamos e, em alguns
casos, pode até dar certo, mas, geralmente, escolhemos baseados em nossos
valores e idealizações. Já com um amigo, não é assim. A gente não diz que quer
um amigo loiro, de 1,80m, formado em engenharia ou uma amiga mignon, de cabelos
compridos, que adore crianças e queira muito ter filhos. Os amigos simplesmente
acontecem, eles entram na nossa vida de maneira imperceptível, vão se
instalando, vão ficando e as afinidades vão se delineando, os laços se
estreitando e, quando se vê, a gente tem um pacto de vida, uma união de alma
com aquela pessoa, seja ela como for.
Ao longo da vida,
conhecemos muita gente, fazemos muitas amizades, mas, a maioria é fugaz,
passageira, amigo mesmo, aquele que diz o que a gente precisa ouvir, com quem
nós sempre podemos contar, que nos empresta dinheiro e nos pede dinheiro
emprestado, que divide conosco os seus segredos e com quem dividimos os nossos
e que muitas vezes parecem nos conhecer melhor que nós mesmos, esses são
poucos. Dá pra contar nos dedos das mãos, às vezes de uma só mão. Eu ainda uso
as duas nessa contagem, embora sobrem dedos. Alguns desses amigos já estão na
minha vida há mais de 40 anos, outros há menos tempo, mas ocupam o mesmo lugar
de destaque e são pessoas que me acompanharão a vida toda e além. “Ao infinito e além!”, como dizia o emblemático
Buzz Lightyear, em Toy Story. São pessoas que
conhecem partes de mim que não estão “abertas ao público”, partes boas e partes
ruins, partes que aprecio e partes que não louvo.
Hoje
moro numa cidade que conheci há apenas dois anos e não tenho amigos aqui. Tinha
no trabalho algumas relações que poderiam evoluir para a amizade, mas, como
parei de trabalhar, essas relações se romperam sem ultrapassar a barreira da
polidez e da formalidade. Meus grandes amigos estão em Monte Alto e em São
Paulo. Um entre eles é cidadão dos ares. Por ser comissário de bordo, está
sempre sobre asas e não tem parada certa, embora mantenha um local como
endereço postal. Outra, já voa com asas próprias, pelos jardins do céu. Mas
todos estão tão perto, tão dentro e tão em volta de mim, uma vez que estou
dentro deles também... Sinto falta de ter, aqui em Mogi Guaçu, alguém nessa
categoria de amigo, alguém pra tomar um chá, um chop ou uma chuva junto. Alguém
pra falar asneiras ou pra discutir o assunto mais importante do universo,
alguém que me olhe e me veja e que eu também consiga olhar e ver. Entendam,
isso não é uma lamentação, apenas uma constatação, afinal, embora Richard Bach
afirme magnificamente num livro sobre amizade que “longe é um lugar que não
existe”, como não ando sobre asas de aço ou sob asas de anjo, Monte Alto e São
Paulo são locais longe o suficiente, e isso me faz sentir uma infinita saudade,
porque um e-mail, um whatsapp ou mesmo um telefonema nunca serão capazes de
substituir um abraço, um aconchego, , um cafezinho coado na hora, um olho no
olho.
Esses dias recebi uma mensagem de um amigo que muito me
emocionou por relembrar um dia em que ouvíamos uma música e ele me perguntou
quem cantava e eu respondi, displicente. Eu jamais me lembraria desse fato, de
anos e anos atrás, mas, ao ouvir a música, ele se lembrou, certamente não
apenas pela beleza dela, mas pelo significado que teve o meu jeito de falar, a
entonação de minha voz, ou algo assim que o marcou, que eternizou aquele
momento para ele. Contando isso, ele me escreveu: “Me lembro de te perguntar quem cantava essa música e sem que olhasse pra
mim, me respondeu - Placido Domingo... e se chama "Perhaps
Love". Havia tanta coisa que eu não me atentava, tantas nuances que
escapavam do meu olhar cru... hoje sei que você não estava ouvindo a música,
você a estava sentindo e isso exigia sensibilidade, ou melhor dizer intimidade
com a experiência. Viver algo significa abandonar o mundo das teorias e
embarcar numa viagem sem mapa rumo ao horizonte, o qual insiste teimosamente em
se distanciar cada vez que chegamos perto. De tudo o que a vida nos oferece,
ouso dizer que o tempo é o que há de mais valioso.”.
Isso pode parecer apenas
um apanhado de frases bonitas escritas por alguém que domina o idioma, mas,
para mim, significam muito, pois na época em que ocorreu isso, esse amigo era
apenas um menino, alguém para quem eu era uma espécie de ídolo e ele bebia
avidamente das minhas palavras. Convivemos o suficiente para ele conhecer de
mim bem mais que a “sensibilidade para ter intimidade com a experiência”, como
ele diz, mas conhecer também muitas das minhas limitações e fraquezas, como eu
conheci as dele, à medida que crescia, até alçar voo, mas, o que importa são
essas pequenas pérolas que se eternizaram, a importância que tive e terei
sempre na vida dele e ele na minha. O interessante é que essa mesma música me
remete a Monte Alto, à minha grande e querida amiga Natalina Collatrelli, pois
foi na casa dela, em Uberlândia, há dezenas de anos, que ouvi essa canção pela
primeira vez e também me lembro exatamente como foi, numa manhã ensolarada e
linda, quando ela nos preparava o café da manhã, com sua linda bebezinha
brincando no tapete da sala, e me dizia o quanto aquela música a fazia se
lembrar de mim.
A quem lê os meus
artigos, pode até parecer que falo excessivamente de mim, que não tenho a
imparcialidade de um jornalista e eu respondo que não mais mesmo, já tive essa
imparcialidade quando fui repórter, quando fui redatora, hoje sou apenas uma
cronista e não há uma só vez que eu fale de mim que não esteja falando de
vocês, de cada um de vocês que me leem, porque a nossa experiência humana é
repleta de similitudes e são esses pequenos acontecimentos, aparentemente tão
sem importância, que constroem as conexões necessárias para atravessarmos a
vida, o que não conseguiríamos fazer sem essa ponte chamada amigo.
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